Memórias do Agora

Eduardo Portilho
4 min readJan 17, 2025

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Um dia, o momento do descanso eterno chegará para todos nós. Um momento onde o mistério da vida, será trocado por um silêncio eterno, ou, pelo menos, por algo ainda mais enigmático. Até que esse momento se apresente a nós, viveremos caminhando por uma realidade que, em última análise, é uma longa interrogação. A morte, tal como a vida, traz em si sua opacidade, que escapa de nossa concepção. É como se diante de nós, tivesse nascido uma melodia, cujo final jamais saberemos, mas que ainda assim, bate em nós com profundidade.

Toda canção precisa de um começo, a vida não é diferente. Ela começa com um sopro, um movimento, uma nota que se repete sempre novamente, mas nunca totalmente igual. Somos simultaneamente criadores e espectadores de uma sinfonia caótica, onde o desconhecido é tanto ameaça quanto promessa. No entanto, essa música, tão bela quanto inquietante, carrega um peso: a consciência de que somos passageiros em um trem sem destino claro. E enquanto viajamos, somos levados a confrontar o vazio, o ruído e as pausas que compõem nossa própria partitura.

Se sentir livre, mas estando perdido, é uma sensação comumente encontrada, especialmente em um universo saturado de estímulos. Parece que quanto mais buscamos nos libertar das amarras externas, mais nos deparamos com prisões internas. Albert Camus, em O Mito de Sísifo, reflete sobre a absurda busca por sentido em um universo indiferente. O homem, ao se deparar com o absurdo, tem apenas uma escolha: encontrar significado na própria jornada, mesmo sabendo que o destino final é incerto. Essa liberdade consciente é ao mesmo tempo libertadora e assustadora, pois revela o quanto somos responsáveis por preencher o vazio com nossa própria essência.

O ato de desapegar, ainda que de maneira dolorosa, é também uma forma de libertação. Soltar é dar passagem a algo novo, mas, ao mesmo tempo, ver a falta daquilo que foi importante. Seja uma pessoa, um sonho ou uma antiga versão de nós mesmos, soltar implica arrancar um pedaço de nós, aceitar que a vida se compõe de capítulos que não podem coexistir. As memórias, essas sim permanecem, elas nos ligam ao passado, mas, também, nos advertem de que o presente é tudo que temos. O paradoxo é que, quanto mais tentamos prender-nos ao que já foi, mais perdemos a possibilidade de vivenciar uma nova experiência.

A imperfeição da vida é o que a torna extraordinária. Em um mundo obcecado por idealizações — sejam elas de sucesso, amor ou felicidade — esquecemos que a beleza está no real. Um objeto quebrado, uma emoção confusa ou um momento de silêncio desconfortável carregam mais verdade do que qualquer imagem polida nas redes sociais. Camus, ao celebrar o cotidiano, nos lembra que até mesmo os mais simples gestos, como sentir o calor do sol ou ouvir o vento, são testemunhos de uma vida verdadeira. O segredo pode estar em reconhecer essas imperfeições, encontrando a poesia na própria existência.

As memórias, têm o poder de nos transportar para um espaço onde o tempo parece suspenso. Elas nos ligam a quem éramos e àquilo que projetamos como esperado de nós mesmos, um conector de passado e presente. No entanto, viver apenas nelas é transformar-se em uma cidade abandonada, onde os ecos do que foi impedem o florescimento do que pode vir a ser. E, assim como as ruas empoeiradas de uma cidade abandonada, pode ser o coração humano, um lugar cujos compartimentos estão desabitados e cuja verdade é somente ruinas clamando por renovação. Para viver, é preciso reconhecer o valor do agora e deixar que novas histórias sejam escritas.

Quando projetamos expectativa no futuro e não encontramos as respostas que procuramos, vivemos um vácuo existencial. É como tentar alcançar uma montanha distante mas andando na direção contraria a ela. Essa frustração, entretanto, pode ser transformadora. Ela nos força a reavaliar o que realmente importa, afastando-nos da ilusão de controle. Como o viajante que se perde no deserto, encontramos na incerteza uma oportunidade para redescobrir o que somos e o que desejamos.

Por vezes, viver em lugar que perdeu sua “vida” — seja o lugar físico ou o lugar emocional — é o desafio que todos nós enfrentamos em um determinado momento. Nos sentimos deslocados, como se nossa própria condição houvesse sido reduzida a um eco. Contudo, nos momentos de aparente estagnação em que somos levados a este estado, podemos encontrar a força e o impulso para renascer. As ruinas de nossos antigos sonhos, podem constituir alicerces para novas possibilidades, desde que queiramos ter coragem de reconstruir.

A vida é incompleta por natureza, mas é justamente essa incompletude que lhe dá significado. Abraçar o desconhecido, aceitar o vazio e encontrar beleza no caos são atos de coragem que nos conectam ao que há de mais humano. Afinal, como a música, a vida não precisa ser totalmente compreendida para ser apreciada. Ainda que o destino final permaneça um mistério, cada nota tocada ao longo do caminho é um convite para viver plenamente, mesmo sem todas as respostas.

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