O Cárcere Invisível: Quando a Punição Externa é Apenas o Reflexo de um Inferno Interno

Eduardo Portilho
10 min readJan 16, 2025

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Raskolnikov e Sonya em adaptação, 2007.

Fiodór Dostoiévski não é um nome que ecoa somente nas paredes das bibliotecas ou das salas de aula. Ele foi um homem que olhou para o abismo da condição humana, que tocou as engrenagens frias do sistema penal russo e sentiu em seu corpo o peso esmagante de um regime autoritário. Ele foi condenado à morte em 1849, mas teve sua condenação trocada por trabalhos forçados na Sibéria, e foram nessas condições que viveu os anos de sua punição, que mais pareciam uma encarnação do inferno. Lá, entre correntes e desespero, Dostoiévski encontrou não apenas sofrimento, mas matéria-prima para suas histórias e reflexões. Esta experiência não constituiu somente sua visão como escritor, mas também como pensador, alguém que não concebe a justiça como um conceito abstrato, mas como o dia a dia, a luta entre poder, desigualdade e redenção.

E é exatamente esta experiência que Dostoiévski faz uso para construir o universo moral de Crime e Castigo. O livro não é apenas a história de um crime, mas a anatomia da alma despedaçada. Raskólnikov, o personagem principal, acredita estar acima da lei, inspirado em figuras como Napoleão. Ele decide matar uma velha usurária, acreditando que sua morte produzirá um bem maior. E, após o crime, não é o medo da prisão que lhe causa o terror, mas sim a culpa por ter cometido este crime. É aqui que Dostoiévski cristaliza a complexidade do humano: isto é, a lei pode punir o corpo, porém a consciência castiga a alma.

“Eu não matei um ser humano, eu matei um princípio”, diz Raskólnikov consigo mesmo em busca de uma justificativa para o injustificável. Contudo, o sangue derramado não seca, ele grita, demanda resposta, corrói. Essa frase ressoa em nossa percepção do Direito: até que ponto podemos relativizar a moralidade em nome de uma suposta legalidade? Quando pensamos nas decisões judiciárias, nos casos mais tensos, a pergunta se transforma: quem decide o que é justo? E se quem decide estiver errado?

Dostoiévski não nos dá uma resposta fácil. Ele nos coloca em uma espiral descendente de Raskólnikov, um homem que, mesmo libertado das grades, leva dentro de si a carga de uma prisão interna. A culpa é aqui a punição invisível, mas incomparavelmente mais eficaz que uma qualquer sentença. “Parecia que o próprio céu pesava sobre ele com uma força esmagadora, até que ele não pudesse mais suportar”. Essa não é uma descrição apenas literária, é um mergulhar naquilo que o Direito Penal tenta compreender ao deparar-se com os efeitos psicológicos da punibilidade; será que as prisões, no seu frio concreto, conseguem mesmo punir como a consciência humana?

E, no meio desse turbilhão, aparece Sônia, que aqui é o contraponto: a personagem que encarna a ideia de redenção. A religiosidade de Sônia é profunda: ela acredita no poder do sofrimento como caminho para a purificação. “Aceite o sofrimento e seja redimido por ele, é o que Deus quer de você.” Mas essa é uma crença que ultrapassa a religião e chega ao domínio da justiça: que redenção é essa em um sistema que só serve para punir? O Direito, em especial o Direito restaurativo, busca dar uma resposta: Como reconciliar o criminoso com a sociedade e consigo mesmo? Dostoiévski nos mostra através de suas narrativas que não há saída sem enfrentamento, sem confissão, sem reparação, mas também sem compaixão.

A trajetória de Raskólnikov dialoga também com um tema que está presente nos debates muito contemporâneos: o conceito do “super-homem”, isto é, aquele que estaria em condição de além da lei. “Haveria, efetivamente, pessoas, destinadas a se permitir todo tipo de crimes e outras, somente, a padecê-los?” Tal pergunta não apenas confunde a narrativa do romance, mas, ainda, as nossas próprias estruturas de poder. Quantas vezes encontramos líderes, empresas ou organismos que têm o aspecto de operar em outra esfera que não a da legalidade, e justificam as suas atitudes em nome de um “bem maior” suposto? O Direito deve lidar com esses seres, mas estaria preparado para eles? Dostoiévski nos mostra inclusive que Raskólnikov acaba perdido por sua soberba, seu poder de superar a condição humana , o super-homem tropeça em sua humanidade.

Dessa forma, vemos em “Crime e Castigo” uma obra que retrata a relação entre justiça retributiva e restaurativa. De um lado a pena do Estado, com seu caráter retributivo; do outro, a jornada interna de Raskólnikov para a restaurativa. Esta dualidade nos obriga a refletir: o que buscamos com o Direito Penal? Apenas penas ou também transformações?. A trajetória de Raskólnikov nos faz lembrar que, apesar de todas as falhas do sistema, pessoa humana é capaz de encontrar a redenção — contudo , sempre será difícil e não linear.

Dostoiévski nos revela que a pobreza extrema é uma das engrenagens mais cruéis da criminalidade. Raskólnikov, em sua condição, tendo em vista o crime não apenas como escolha , mas quase como destino imposto pela miséria. Ao afirmar que ‘não hesitará em matar para salvar a mãe e a irmã dela’, não está apenas verbalizando uma lógica moral, mas sim o grito do desespero social. A criminologia crítica nessa narrativa encontra um poderoso eco: como a privação de bens materiais e o abandono estrutural levam pessoas ao crime que seriam impensáveis em outro cenário. Entretanto, não é somente a miséria em si que faz o papel de provocadora do crime, mas também a humilhação que a acompanha, uma vez que leva a um ciclo degradante de ruína moral que transforma os indivíduos em instrumentos da própria degradação. Raskolnikov quer não apenas sair da pobreza, mas deseja tornar-se mais que a sua condição humana, ele quer estar em um estado que acredita que está acima do bem e do mal.

O contraste entre a lei e a consciência é outro pilar do romance. Raskólnikov não é julgado pelo tribunal imediatamente; ele é consumido por uma instância interna muito mais implacável. Dostoiévski revela que, antes de qualquer juízo formal, é a própria moralidade que se converte em um carrasco invisível. No Direito, quando se vive um antagonismo entre a lei vigente e a ética pessoal, surge uma questão primordial: até que ponto as normas externas podem prevalecer sobre as convicções profundas — e que ocorre quando o conflito explode em culpa? Raskólnikov é a encarnação desse dualismo; desde a hora em que rompe com a lei, ele não consegue escapar do tribunal de sua consciência, que o julga com uma severidade incomparável. O Direito dos dias de hoje, em casos em que o problema penal é de natureza essencialmente moral, encontra nas obras de Dostoiévski um espelho perturbador: é possível verdadeiramente punir alguém que já é punido por suas culpas?

A opinião pública é uma força quase palpável. Raskólnikov teme mais o olhar silencioso e o murmúrio da sociedade do que as palavras oficiais de um juiz. Dostoiévski prevê, assim, o poder da corte da mídia, que amplia as vergonhas e impõe penas que não se encontram em nenhum código penal. Em tempos modernos, com a mídia influenciando diretamente os atos de justiça, aqui se deve realmente perguntar: a justiça ainda é imparcial diante das câmeras? A sociedade se torna, muitas vezes, uma arena em que a reputação é destruída antes mesmo que um julgamento justo ocorra. Nesse sentido, a exploração de Dostoiévski sobre a vergonha e a opinião pública não apenas contextualiza o romance, mas também lança luz sobre problemas éticos persistentes no Direito, como a presunção de inocência e a imparcialidade judicial.

O utilitarismo jurídico, encarnado pela filosofia de Raskólnikov, é desconstruído de forma brutal. A ideia de que o fim justifica os meios — matar uma velha para beneficiar muitos — se dissolve diante das consequências humanas do ato. Dostoiévski mostra como essa visão ignora a complexidade da vida e da moralidade. Em contraponto, o Direito baseado em valores universais busca respeitar a dignidade humana, rejeitando a redução das pessoas a números ou objetivos estratégicos. Essa crítica é especialmente relevante em um contexto em que soluções rápidas e eficientes muitas vezes desconsideram os impactos éticos e sociais das decisões legais. O pensamento de Dostoiévski oferece uma análise profunda das falácias de um Direito que prioriza resultados em detrimento de princípios.

A punição, para Dostoiévski, não é apenas um mecanismo de repressão; é uma chance de transformação. Raskólnikov se ajoelha e beija a terra, sentindo-se purificado. A cena não é apenas simbólica, mas um argumento para teorias modernas de reabilitação, que veem o criminoso como alguém que pode ser reintegrado, em vez de permanentemente excluído. Essa premissa é crucial para a condução dos debates acerca do adequado papel da punição nas sociedades que buscam a justiça restaurativa, a qual Dostoiévski também nos avisa quanto aos perigos da punição desumanizante, que reduz o homem a um objeto de vingança social, ao invés de um agente de transformação moral. A justiça penal deve ser compreendida por conseguinte, como um ato de equilibração entre o reconhecimento da dor causada e a expectativa de redenção.

Entretanto, a justiça humana é limitada e imperfeita. Dostoiévski prossegue afirmando que quando a justiça humana se larga dos princípios morais mais altos, está fadada a tornar-se uma ferramenta de poder e não um instrumento de equidade. A crítica é direcionada para sistemas jurídicos que falham em abordar a questão da desigualdade ou que ignoram a busca pela verdade, conservando os formalismos do Direito. O personagem de Raskólnikov é um lembrete ao fato de que a justiça deve ir além da letra da lei e alcançar os valores humanos que os movem. Num mundo que parece cada vez mais polarizado e em que o Direito é todo o tempo atacado por narrativas dos poderes e pelo relativismo, Dostoiévski nos lembra que justiça alguma pode existir sem as bases sólidas. Ele nos convida a refletir sobre as falhas do sistema penal, que frequentemente parece se mostrar improdutivo tanto na punição quanto na redenção.

A interseção entre Direito e psicologia é brilhantemente explorada. Porfíri, o investigador, entende que a mente de Raskólnikov é o verdadeiro lugar a ser estudado,. e essa abordagem antecipa a necessidade de integrar saúde mental no sistema jurídico. Decisões judiciais que desconsideram a psicologia do acusado ou da vítima ignoram dimensões fundamentais da justiça. Dostoiévski ilustra que a compreensão da psique humana vai além de um mero acréscimo ao Direito; trata-se de um componente essencial para sua aplicação eficaz. A tensão psicológica presente em “Crime e Castigo” serve como uma metáfora para o dilema intrínseco do sistema jurídico: como harmonizar razão e emoção, justiça e compaixão?

Além disso, o autor critica a adoção indiscriminada de filosofias estrangeiras no contexto jurídico russo. Ele argumenta que as leis devem refletir os valores locais, em vez de serem meras adaptações superficiais de teorias universais. Sua perspectiva dialoga com o Direito comparado, que valoriza as particularidades culturais e históricas de cada sociedade. A narrativa de “Crime e Castigo” nos adverte sobre os riscos de um Direito desconectado das realidades sociais que deveria regular, evidenciando como a falta de fundamentação cultural pode resultar em alienação e na ineficácia das normas.

A desigualdade legal, personificada na situação de pobreza de Raskólnikov, revela uma ferida profunda nos sistemas jurídicos. Aqueles desprovidos de recursos enfrentam obstáculos desumanos para acessar a justiça, enquanto os favorecidos se aproveitam de brechas e acumulam privilégios. Assim, a acessibilidade ao Direito se torna um verdadeiro teste da equidade de qualquer sistema. Dostoiévski sugere que, mesmo em meio ao desespero, a desigualdade permeia as interações humanas, suscitando a indagação: pode haver justiça em um mundo essencialmente desigual?

A confissão de Raskólnikov é o ponto culminante de sua redenção. Dostoiévski deixa claro que a verdade, mais do que a punição ou qualquer conceito abstrato de justiça, é o que liberta a alma. Quando Raskólnikov admite seu crime, ele não apenas aceita a condenação social e jurídica, mas também se reconcilia consigo mesmo. Esse momento simboliza uma transformação profunda: a passagem do caos à ordem, do niilismo à moralidade. É aqui encontro entre o Direito e a antropologia, que se dá o reconhecimento da importância do ritual de pena e da confissão na restauração da ordem social: a pena pública sobre Raskólnikov, embora ela tenha um caráter de dor, é uma pena que ainda tinha valor quase ritual de purificação para a sociedade, restaurando seus valores e permitindo, ao mesmo tempo, que o indivíduo possa reencontrar o seu lugar na sociedade.

Sônia, com sua compaixão, é a ponte entre a condenação e a redenção de Raskólnikov. Marginalizada, ela encarna a justiça dos excluídos, mostrando que a ética não é privilégio das classes altas ou das instituições formais, mas pode emergir das camadas mais desprezadas da sociedade. Ela, a primeira a perdoá-lo e a percebê-lo como humano. Sua capacidade de perdoar e de enxergar a humanidade em Raskólnikov é um contraste com a dureza do sistema jurídico, muitas vezes cego às complexidades emocionais e sociais do crime. Dostoiévski nos faz refletir sobre o papel do Direito na inclusão dos marginalizados: como garantir que vozes como a de Sônia sejam ouvidas? Mais do que legislar, é necessário construir um sistema que acolha e humanize, que compreenda o crime não apenas como uma infração, mas como um reflexo de desigualdades profundas.

Com a crítica do niilismo jurídico, Dostoiévski critica uma determinada forma de ver a vida que reduziu as leis a convenções que perderam seu sentido moral; ao mesmo tempo, Raskólnikov, tenta explicar seu crime em termos utilitaristas e niilistas — o que é, conforme os procedimentos da ética utilitária — os direitos. As leis precisam ser mais do que instrumentos de controle; elas devem ser expressões de princípios que transcendam o tempo e as circunstâncias. O Direito, como Dostoiévski sugere, só é legítimo quando está enraizado em valores que reconhecem a dignidade de cada indivíduo e promovem a harmonia na sociedade.

Em síntese, Dostoiévski nos apresenta uma visão fundamentalmente humana para o Direito e a justiça. Raskólnikov, de fato, não é redimido pelo simples cumprimento de sua pena, mas sim pelo enfrentamento de sua própria verdade, pela aceitação de sua falta de caráter e pelo reconhecimento de sua condição humana. O sistema jurídico, que embora esteja presente e que seja necessário, faz parte do enigma. A verdadeira justiça requer empatia, compaixão e a coragem para enfrentar as verdades mais sombrias da condição humana. Ao discutir essas camadas em Crime e castigo, Dostoiévski ultrapassa a literatura e convida a reconsiderar o que é o Direito em nossas vidas, não como regras frias, mas como um instrumento vivo de transformação e esperança.

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