O Futuro do Direito: Advogados, Inteligência Artificial e os Dilemas Éticos de um Mundo em Transformação
A inteligência artificial (IA) já efetivamente alterou várias indústrias e empregos, e não é diferente no que diz respeito ao campo do Direito. Diante da crescente difusão de ferramentas que utilizam algoritmos avançados, por exemplo, o aprendizado de máquina e o processamento de linguagem natural, a advocacia tradicional está em uma encruzilhada: como conciliar práticas jurídicas tradicionais com às promessas de mudar totalmente a profissão com as IA’s? Neste artigo analisaremos como a IA é utilizada no Direito, os dilemas éticos que surgem dessa utilização e se um “advogado virtual” pode ser uma solução ética e prática para aqueles desafios que o próprio Direito contemporâneo apresenta.
No fim do século XX e início do século XXI, a evolução tecnológica tem forçado a adaptação do Direito. O ingresso de sistemas computacionais nos tribunais, a digitalização de documentos jurídicos e a automação de processos foram as primeiras etapas para um processo de transformação maior. No entanto, nos últimos anos assistimos a um novo ciclo de inovação, com a chegada de IA’s que podem realizar tarefas que antes eram exclusivas dos trabalhadores humanos. Ferramentas como o “ROSS Intelligence” e o “LawGeex” merecem destaque, pois exemplificam as mudanças que estão sendo trazidas pela tecnologia ao trabalho jurídico.
A ROSS Intelligence, sistema que se vale da tecnologia do Watson da IBM, foi projetada para efetuar pesquisas jurídicas a uma velocidade que não tem comparação com qualquer ser humano. Enquanto um advogado humano pode levar horas ou dias para revisar jurisprudências, o ROSS oferece respostas em minutos, citando precedentes e sugerindo documentos relacionados. O LawGeex, por outro lado, realiza a automação da análise dos contratos, identificando as cláusulas problemáticas e recomendando as modificações. Esses instrumentos não apenas acrescentam eficiência ao trabalho jurídico, como também garantem o acesso democrático à informação jurídica, possibilitando que as pequenas empresas e os indivíduos usufruam de serviços de alta qualidade com menor custo.
Apesar dessas vantagens, a introdução da IA no Direito levanta questões éticas fundamentais. Primeiro, há o problema da imparcialidade algorítmica. As pesquisas têm demonstrado que os algoritmos podem reproduzir preconceitos existentes seguindo dados a partir dos quais foram treinados. Um exemplo disso seria a pesquisa levada a cabo pela ProPublica que revelou que o sistema COMPAS, utilizado nos Estados Unidos para prever o risco de reincidência criminal, estava enviesado contra réus negros. No universo jurídico, tal enviesamento poderia provocar injustiças sistêmicas que, por sua vez, ameaçam a igualdade perante a lei.
Além do mais, o pressuposto da transparência é fundamental. Os advogados humanos podem justificar suas decisões com base em argumentos da razão e provas fundamentadas, ao passo que os algoritmos de IA, via de regra, operam sob a forma de “caixas-pretas”, em que nem mesmo os próprios desenvolvedores conseguiriam explicar como chegam a uma decisão. Isso é especialmente preocupante nas situações em que estão em jogo a liberdade ou os bens de um indivíduo.
Outro dilema ético é o impacto da IA no mercado de trabalho jurídico. Estudos da Deloitte sugerem que cerca de 39% das tarefas legais podem ser automatizadas nas próximas duas décadas. Isso representa uma ameaça real para advogados em início de carreira, paralegais e outros profissionais do setor. No entanto, também pode criar novas oportunidades, como o surgimento de carreiras híbridas que combinam conhecimento jurídico com expertise em tecnologia.
Uma questão central no debate sobre a IA na advocacia é se um advogado virtual pode realmente substituir um advogado humano. Para responder a essa pergunta, precisamos considerar o que significa ser um advogado. Além de conhecimento técnico, a prática do Direito exige empatia, julgamento ético e habilidades interpessoais que, até agora, estão além do alcance da IA. Um advogado humano pode entender as nuances emocionais de um cliente, adaptar sua abordagem às necessidades individuais e exercer discricionariedade em situações ambíguas. Por outro lado, um advogado virtual é limitado às instruções programadas e à qualidade dos dados que recebeu.
Tomemos como exemplo o caso do chatbot “DoNotPay”, frequentemente referido como “o primeiro advogado robô do mundo”. Criado por Joshua Browder, o DoNotPay ajuda os usuários a contestar multas de trânsito, solicitar reembolsos e até mesmo redigir cartas legais simples. Embora seja uma ferramenta eficaz para questões rotineiras, sua funcionalidade é restrita. Em situações complexas, como litígios empresariais ou casos de direito penal, o DoNotPay é insuficiente.
Além disso, há implicações legais significativas em permitir que uma IA represente clientes em tribunais. Muitos países têm regulamentações estritas sobre quem pode exercer a advocacia, e um advogado virtual não pode, em sua forma atual, cumprir os requisitos de licenciamento. De maior importância, um não humano à frente da defesa pode introduzir problemas de responsabilidade. Se uma IA cometer um erro que resulte em danos ao cliente, quem será responsabilizado? O desenvolvedor? O usuário? A empresa que vendeu a ferramenta?
Apesar desses desafios, a integração da IA na advocacia não deve ser descartada como um sonho futurista ou uma ameaça inevitável. Em vez disso, deve ser vista como uma oportunidade para reformular o sistema jurídico de maneira mais justa, eficiente e acessível. Uma abordagem híbrida, onde advogados humanos trabalham em conjunto com ferramentas de IA, pode oferecer o melhor dos dois mundos.
Por exemplo, a IA poderia ser utilizada para lidar com as tarefas repetitivas e lentas de trabalho, tais quais a revisão de documentação e a pesquisa jurídica, permitindo que advogados pudessem focalizar nas questões mais complexas e esperadas. Além disso, a análise de grandes volumes de dados pode ajudar a identificar tendências e padrões que seriam impossíveis de detectar manualmente, informando estratégias jurídicas e políticas públicas.
Do ponto de vista regulatório, é essencial que os governos e organizações jurídicas elaborem normas explícitas e claras para o uso eficaz de IA para fins do Direito, incluindo, que os algoritmos sejam auditáveis, transparentes e livres de preconceitos. Também é necessário investir em educação e treinamento para advogados, para que possam compreender e utilizar a tecnologia de maneira responsável.
Outro aspecto importante é a colaboração interdisciplinar. Advogados, cientistas da computação, sociólogos e especialistas em ética precisam trabalhar juntos para garantir que a IA seja desenvolvida e implementada de forma a respeitar os valores fundamentais da justiça e dos direitos humanos. Projetos como o “AI and Justice Initiative”, liderado pela Universidade de Stanford, são um exemplo de como essa colaboração pode ser realizada.
A questão do “advogado virtual” não é apenas um desafio técnico ou ético, mas também uma oportunidade para repensar o papel do Direito em uma sociedade cada vez mais digitalizada. Em vez de ver a IA como uma ameaça à profissão jurídica, devemos abraçá-la como uma ferramenta para ampliar o acesso à justiça e promover uma advocacia mais eficiente e inclusiva.
No entanto, é crucial lembrar que o Direito é, em última análise, uma profissão centrada no ser humano. Embora a IA possa aumentar a eficiência e melhorar a precisão, ela nunca substituirá a empatia, a intuição e o julgamento ético que os advogados humanos trazem para a mesa. Assim, o futuro da advocacia não reside em escolher entre humanos e máquinas, mas em encontrar maneiras de combinar o melhor de ambos para servir à justiça de forma mais completa e equitativa.