Santo Ernesto: A Revolução como Ato de Fé
A figura do de Ernesto Che Guevara, que perpassa as fronteiras e os tempos, continua a gerar inspirações em pessoas de todo o mundo. Ela apresenta-se como o rosto de um ideal, o símbolo de uma luta contra o próprio status quo político e econômico, em suma, uma luta contra a resignação. Para muitos, Che é mais que um herói revolucionário; ele é um quase Santo, um mártir que aportou sua vida para uma causa maior. Seu percurso pode ser avaliado em relação ao conceito de santidade — em sentido bem mais amplo que o religioso, mas como o homem que se entrega por completo à redenção de uma sociedade, à libertação de um povo, à edificação de um novo horizonte ético e moral. O clássico grito, “Hasta la victoria, siempre”, ecoa não somente como um chamado à luta, senão como uma oração, um mantra para os que acreditam no impossível.
A santidade que envolve Che Guevara provém, em primeiro lugar, de sua prontidão para o sacrifício. Aqui, não se trata de uma vida abastada nem da procura de recompensas materiais. Che ainda viveu sem privilégios nem poder, renunciando a funções elevadas do governo cubano por uma luta que sabia, na melhor das suposições, incerta. Abandonou a glória que comquistou na Revolução Cubana, como ainda uma vida que poderia ser aprazível, a fim de aventurar-se por terras desconhecidas, enfrentando perigos inevitáveis e adversidades quase intransponíveis. Essa escolha de dar um passo fora do conforto e entrar no fogo materializa um valor que poucos têm, aproximando-o da auréola de figuras míticas e santificadas.
Na Bolívia [onde o esperava o seu destino final], Che não apenas chefiava uma guerrilha. Ele pregava, ensinava, inspirava. Para os camponeses bolivianos, Che tornou-se um mito mais do que um homem. Na pequena aldeia de La Higuera, onde foi aprisionado e morreu, sua memória tornou-se culto. Ali, ele não é somente Ernesto Che Guevara. Ele é Santo Ernesto, figura que as pessoas evocam em busca de proteção e força, homem que deu sua vida para libertar aqueles que permaneciam aprisionados à miséria e ao abandono. Não é difícil compreender então por que essa transformação ocorreu. Em um mundo em que a justiça parecia estar tão distante, Che cedo tornou-se o símbolo de que alguém estava pronto para morrer por ela.
Che Guevara personificou, na verdadeira acepção do termo, o que poderíamos nominar heroísmo ético. Ele não ficou apenas no plano teórico da revolução; ele a viveu em sua própria pele, em suas mãos calejadas, em seu corpo torturado. O ideal do “homem novo”, que tanto anunciou, não era uma abstração; era o apelo à transformação radical do ser humano — um homem que não seria dominado pelo egoísmo, pelo consumismo, pela apatia. Che entendia que o capitalismo não apenas explorava as massas, mas não perdia apenas a vida das massas, mas a alma do homem, reduzindo as pessoas ao status de máquinas de desejo por bens materiais do desejo por tudo do desejo. Sua visão entra na história do mais profundo utopianismo ético: um lugar de trabalho realizado por amor, um lugar onde a solidariedade reinaria, e onde a coletividade superaria os interesses dos indivíduos.
Essa visão, naturalmente, esbarrou em resistência, tanto nas camadas que se beneficiavam do sistema que ele disputava tanto quanto os que consideravam suas ideias perigosas ou ingênuas. Mas Che não se deixaria abalar. Seu ataque ao imperialismo era vozerio, sua crítica apontava para o reforço das feridas abertas da América Latina como frutos de séculos de exploração colonial e neocolonial. Ele denunciava as interferências externas como responsabilidades do encadeamento da pobreza e da desigualdade em países que deveriam ser livres e soberanos. Para ele, a América Latina não era uma união de nações, mas uma única pátria, marcada por uma constante história de sofrimentos, de partilha de luta.
O conceito de santidade que podemos vincular a Che Guevara excede, portanto, a religiosidade convencional, revelando uma ideia muito parecida com a de um ser humano totalmente entregue a uma causa e que aceita perder tudo, até mesmo a vida, para comover-se a direitos ideal de justiça. Esse idealismo inflexível é a razão pela qual Che é uma figura tão polêmica e ao mesmo tempo tão adorada. Para os que não o adoram, ele é um muito romântico, sonhador, que desconhecia as realidades da vida real. Para seus seguidores, ele é a demonstração de que é possível viver e morrer por um ideal maior.
Sua vida também nos mostra uma coragem moral que poucos poderiam encontrar para apodar. Che não enfrentou apenas os inimigos externos; enfrentou aos próprios aliados, quando considerou que estes traíam aos princípios da revolução. Sua crítica ao socialismo soviético é exemplar neste aspecto. Che viu, na burocratização, na centralização extrema do poder, uma ameaça ao verdadeiro espírito da revolução. Para Che, a revolução não deveria ser um fim em si mesma; deveria ser o começo de uma transformação profunda e contínua da sociedade e do homem. Essa preocupação o levou a ter inimizades, mas também ajudou a consolidar sua imagem de alguém que nunca se dobrou diante da pressão do pragmatismo.
A morte de Che, em 9 de outubro de 1967, representou o termino de sua vida física, mas também deu origem à sua imortalidade. A imagem de Che com sua boina e olhar determinado tornou-se um ícone mundial, sendo estampada em camisetas, pôsteres e murais. Para alguns, parece contraditório, dada a aversão ao consumismo; para outros, uma prova de que sua mensagem foi capaz de transcender o tempo e o espaço. Ele não é mais um herói da América Latina: ele é um símbolo universal de resistência, de esperança e de luta por um mundo mais justo.
E talvez justamente isso escale Che ao nível da santidade. Che não pertence somente aos livros de história ou aos textos acadêmicos. Ele pertence ao coração das pessoas que ainda acreditam na possibilidade de mudar o mundo. O seu grito “Hasta la victoria, siempre” não é só um lema revolucionário. É um chamado à persistência, à coragem e à fé na humanidade. É promessa de que, mesmo diante do absurdo da opressão, a luta continua.
Che Guevara persiste como uma lembrança de que a grandeza não reside na vitória pessoal, mas na entrega ao coletivo e ao destino comum. Sua vida e sua morte são um desafio à assertiva de que o pragmatismo deve sempre se sobrepor a ideais. Ele nos provoca a sonhar, a lutar, a não desistir — mesmo quando o triunfo pareça impossível. Porque, como ele mesmo disse, “o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor”. E talvez seja este amor — amor à liberdade, amor à justiça, amor à humanidade — que faz dele, para muitos, um santo da modernidade.