You always say you want to disappear, but actually you just want to be found
Ele acordou com um solavanco, a cabeça latejando como se tivesse dormido tempo demais. O trem balançava de leve sobre os trilhos, um ruído monótono de ferro contra ferro preenchendo o espaço ao seu redor. O ar era denso, abafado, um cheiro metálico e úmido impregnando suas narinas.
A primeira coisa que percebeu foi o chão áspero sob suas mãos. Frio. Sujo. Quando abriu os olhos por completo, encontrou-se sentado entre corpos inertes, amontoados de qualquer jeito pelo chão do vagão. Pessoas dormiam ali, algumas encolhidas sobre si mesmas, outras largadas como se fossem parte do ambiente. Os assentos, que deveriam ser para os passageiros, estavam vazios. Ou melhor, estavam inutilizáveis. Pregos enferrujados saíam do estofado, estilhaços de vidro espalhados sobre eles. Como se tivessem sido propositalmente negados.
Ele se ergueu devagar, um tremor percorrendo suas pernas. Tentou dizer algo, chamar alguém, mas a voz saiu fraca, um eco sem força que se perdeu no balançar do trem. Ninguém respondeu. Os que dormiam sequer se mexeram. Olhou para os lados, tentando entender onde estava.
As janelas estavam cobertas de sujeira, uma camada espessa de poeira e fuligem obscurecendo qualquer visão para fora. Só vultos difusos passavam do lado de fora, sombras sem forma, como se o próprio mundo lá fora fosse um borrão. O único som além do trem era um alto-falante que chiava de tempos em tempos, emitindo mensagens truncadas, palavras quebradas que não faziam sentido.
Ele não lembrava de ter embarcado. Não lembrava de nada antes de abrir os olhos. Apenas um vazio, como se sua existência começasse ali, naquele instante, naquele vagão abafado e decadente.
Deu o primeiro passo, desviando dos corpos no chão. Alguns murmuravam coisas inaudíveis em meio ao sono. Outros tremiam, como se tivessem frio, mas ninguém acordava. Continuou andando pelo corredor estreito, sentindo o chão rangendo sob seus pés. No fim do vagão, uma porta enferrujada o separava do próximo ambiente.
Empurrou devagar. Um rangido longo e arrastado cortou o silêncio, mas o barulho não despertou ninguém. Do outro lado, um novo vagão. Diferente. Menos decadente.
As pessoas aqui estavam sentadas, mas não pareciam vivas de verdade. Rígidas, imóveis, encaravam algum ponto invisível à frente. Algumas seguravam jornais que não liam, outras tinham os olhos vidrados em telas acinzentadas que não emitiam imagem alguma. O ar era frio, mas não carregava o cheiro de ferrugem e podridão do vagão anterior. O silêncio, no entanto, era o mesmo.
Ele caminhou entre as fileiras de assentos, esperando que alguém o notasse. Nenhum olhar, nenhum movimento. Encostou-se na lateral de um dos bancos, tentando ver se alguém reagiria ao toque. Nada. A textura do tecido era lisa, fria. Como se fosse feito de algo inorgânico.
Na frente do vagão, um relógio pendurado acima da porta mostrava as horas. Mas os ponteiros não se moviam. Trancados em um mesmo minuto, uma prisão no tempo. Abaixo dele, um quadro de avisos exibia símbolos e números, mas tudo estava embaralhado, ilegível.
Ele olhou para as próprias mãos, buscando algum sinal de que era real, de que existia. Estavam ali, sólidas, mas havia algo de estranho. Sua pele parecia pálida demais, os dedos um pouco rígidos. Um calafrio subiu pela sua espinha.
Respirou fundo e continuou. Não sabia para onde ia, mas algo o empurrava para frente. Como se recuar não fosse uma opção.
Atravessou a próxima porta.
Outro vagão. Outro cenário.
Aqui, tudo era dourado. As luzes eram mornas, acolhedoras, refletidas em espelhos limpos e polidos. Poltronas confortáveis se espalhavam pelo espaço, ocupadas por pessoas vestidas em roupas impecáveis. Riam, brindavam, comiam de pratos finos. Garçons passavam servindo taças de cristal. O som ambiente era de conversas leves, de música suave, de um mundo que contrastava completamente com os vagões anteriores.
O coração dele acelerou. Finalmente, um lugar onde poderia ser visto.
Tentou se aproximar, tocar no ombro de alguém. Mas a pessoa sequer reagiu. Sua mão atravessou a matéria como se fosse feita de vapor. Um arrepio percorreu seu corpo inteiro.
Ele não estava ali. Ou melhor, ele estava, mas ninguém percebia.
Engoliu seco, o gosto amargo de algo que não compreendia se espalhando pela boca. Seus olhos correram pelo ambiente, buscando algum sinal, alguma resposta. E então viu.
Na parede, um grande espelho refletia o vagão dourado.
Mas sua imagem não estava lá.
Um tremor percorreu seus ossos. Um buraco se abriu em seu peito, um vácuo de compreensão.
Onde estou?
O que sou?
Ele sentiu o peso do silêncio sobre os ombros. O espelho, imóvel, recusava-se a lhe devolver qualquer reflexo, como se negasse sua própria existência. Tentou erguer a mão, tocar a superfície fria, mas seus dedos não encontraram resistência. Passaram direto, como se o vidro fosse feito de névoa.
Deu um passo para trás, a mente girando em círculos. O vagão dourado continuava sua festa surda, seus ocupantes alheios à sua presença. O tilintar das taças, as risadas contidas, a música de fundo, tudo soava abafado, como se viesse de muito longe. A sensação de deslocamento cresceu dentro dele, um nó apertando sua garganta.
Ele não pertencia ali. Mas então, onde pertencia?
Virou-se e voltou pelo caminho de onde veio. O vagão intermediário continuava mergulhado em sua letargia. O relógio preso no tempo, as figuras sentadas, imóveis. Sentiu o desespero crescer em seu peito. Precisava sair. Precisava entender. Os olhos vasculharam o ambiente, procurando algo que não havia notado antes. Então viu um detalhe.
No fundo do vagão, entre dois assentos, um pequeno pedaço de papel. Diferente dos jornais embolorados nas mãos das figuras apáticas, esse parecia recente. Abaixou-se e pegou-o com dedos trêmulos. Havia algo escrito nele. Letras tortas, rabiscadas às pressas:
“Não há volta. Não há saída.”
O papel caiu de suas mãos. Um arrepio percorreu sua espinha.
Ele precisava seguir em frente. Mesmo que não houvesse volta, talvez houvesse um destino. Um propósito.
Com um último olhar para as figuras imóveis, atravessou a próxima porta.
O novo vagão era diferente de tudo que tinha visto até então.
Não havia assentos. Apenas um espaço vazio, amplo, dominado por um tom cinza opaco. O chão era liso, sem textura, e o teto parecia se perder na escuridão. O ar era seco, sem cheiro, sem resquícios de vida. Não havia mais pessoas, não havia mais barulhos. Apenas ele e o nada.
O silêncio era absoluto. Um vazio tão profundo que parecia devorar qualquer pensamento antes que ele pudesse se formar por completo.
Deu um passo à frente. O som de seus próprios passos soou deslocado, como se não pertencesse àquele lugar. Sentiu um peso em suas costas, um cansaço que não era físico, mas existencial. Como se estivesse carregando algo invisível, algo que o puxava para trás.
Respirou fundo. Fechou os olhos por um instante.
Então, ao abri-los novamente, viu algo à sua frente.
Uma porta. Isolada no meio daquele nada.
Atravessá-la era a única opção.
Com um último suspiro, avançou.
Ele parou diante da porta.
Não havia maçaneta, nem fechadura. Apenas uma superfície lisa, metálica, fria. O ar ao seu redor parecia pulsar, como se houvesse algo além daquela passagem esperando por ele. O silêncio era espesso, um tipo de vazio que não só preenchia o espaço, mas também se infiltrava em sua pele, em seus ossos, naquilo que ele ainda ousava chamar de consciência.
Respirou fundo e encostou a mão na porta. A superfície cedeu sob seu toque, dissolvendo-se como névoa. O que havia do outro lado o fez hesitar.
Era um quarto. Pequeno, apertado. Uma cama desarrumada contra a parede, uma escrivaninha com papéis espalhados e um espelho rachado pendurado ao lado da porta. O cheiro era de poeira e café frio, um aroma familiar. Era seu quarto. Ou, pelo menos, parecia ser.
Deu um passo hesitante para dentro. O ar ali dentro era diferente. Tinha peso. Tinha história. Sentiu um nó na garganta ao reconhecer os objetos, os detalhes, as marcas de uma vida que ele não sabia se ainda lhe pertencia. Tocou a escrivaninha e seus dedos encontraram um papel amarrotado. Um bilhete escrito à mão:
“Se você chegou até aqui, significa que algo ainda resta. Mas resta o quê?”
Ele sentiu a pergunta se infiltrar em sua mente, se espalhando como um vírus. Algo ainda restava. Mas o quê? O que havia sobrado dele, da sua identidade, da sua própria existência? Buscou seu reflexo no espelho rachado. Mas ali, mais uma vez, não havia ninguém.
Um arrepio subiu pela sua espinha.
A ausência de sua imagem não era apenas um mistério. Era um veredito. Uma condenação silenciosa que ele não conseguia compreender. Como alguém pode estar ali e, ao mesmo tempo, não estar? Sentiu o peito apertar. Era um vazio que ia além da carne, além do corpo. Algo mais profundo, mais essencial. Um vácuo na própria estrutura do que ele era.
Virou-se, olhando ao redor, buscando algum sinal, alguma resposta. Mas o quarto permaneceu imóvel, indiferente à sua angústia. Algo dentro dele começou a se fragmentar. Como se cada lembrança, cada laço que um dia o prendeu a uma realidade concreta, estivesse se dissolvendo, tornando-se pó antes mesmo de ele poder alcançá-los.
Então, a porta atrás dele se fechou sozinha. O som seco ecoou pelo cômodo. Seu coração disparou.
Ele correu até a porta e tentou abri-la, mas era como se tivesse se tornado parte da parede. Seu peito subia e descia em um ritmo frenético. O pânico começava a crescer. Ele olhou para as janelas, mas não havia janelas. Apenas paredes, apenas confinamento.
Seus olhos voltaram para o espelho rachado. E foi ali, naquela superfície quebrada, que ele viu algo novo.
Um vulto.
Não era ele, mas uma presença indistinta, uma sombra que pairava na rachadura, sem contornos definidos, sem um rosto que pudesse reconhecer. O ar ficou mais denso, como se o próprio espaço ao seu redor estivesse se fechando sobre ele.
O vulto começou a se mover. Primeiro devagar, depois com uma intensidade febril, pulsando dentro do espelho, como se quisesse sair. Ele sentiu sua respiração prender na garganta. O que quer que fosse, estava tentando escapar. Ou talvez estivesse tentando tomá-lo.
Ele deu um passo para trás. O quarto girou ao seu redor, como se estivesse desmoronando. O espelho começou a se estilhaçar, e então, em um sussurro quase inaudível, a voz ecoou na sala:
“Você nunca existiu.”
O impacto daquelas palavras atingiu seu peito como uma lâmina fria. Um grande desespero tomou conta dele. Sua mente se agarrou a qualquer resquício de lembrança, qualquer prova de que ele era real, de que não era apenas um reflexo quebrado em um sonho desfeito. Mas não havia nada. Nenhuma lembrança concreta. Apenas fragmentos desconexos, como se sua vida inteira fosse um quadro pintado por mãos trêmulas, prestes a ser apagado.
A sombra dentro do espelho se lançou para fora.
E então tudo se apagou.
Era um veredito.
Ele não existia.
Ou, pior, existia apenas como um vestígio, um eco sem corpo, uma ideia perdida entre vagões que nunca paravam. O silêncio do quarto parecia zombar dele, como se o próprio espaço estivesse ciente da piada cruel que era sua existência. Tentou tocar o espelho, mas seus dedos atravessaram a superfície, assim como haviam feito no vagão dourado. Era apenas um fantasma em um mundo que já havia seguido em frente sem ele.
O bilhete em sua mão tremia levemente. “Mas resta o quê?”
Engoliu seco. Não havia resposta. Nunca houve.
De repente, um som distante quebrou o silêncio. Um apito. Um trem se aproximando. Ele se virou instintivamente para a porta do quarto — mas ela já não estava ali. No lugar, apenas escuridão. Um vento seco e abafado soprou de dentro desse vazio, trazendo um cheiro de ferro e fuligem. Ele conhecia aquele cheiro.
O trem.
O ruído de ferro contra ferro cresceu, o tremor subindo por suas pernas. Ele tentou recuar, mas o chão não estava mais ali. Seu corpo caiu para trás, sendo puxado para dentro do nada, tragado pela escuridão como se nunca tivesse estado ali.
Então, de súbito, acordou com um solavanco.
O trem balançava suavemente sobre os trilhos. O ar era denso, abafado. O cheiro metálico e úmido impregnava suas narinas.
O chão áspero sob suas mãos. Frio. Sujo.
Olhando ao redor, viu os mesmos corpos inertes espalhados pelo vagão. As mesmas janelas cobertas de sujeira. O mesmo alto-falante chiando palavras quebradas. Tudo exatamente como antes.
Ou talvez, como sempre.
Ele não gritou. Não se levantou de imediato. Apenas ficou ali, sentado no chão imundo, sentindo o trem continuar seu curso por trilhos invisíveis, rumo a lugar nenhum.
O relógio quebrado no vagão intermediário, o espelho que nunca lhe devolvia o reflexo, o bilhete que perguntava se ainda restava algo — tudo isso se misturava na sua mente como peças de um quebra-cabeça sem imagem final.
E então ele percebeu.
Talvez não houvesse destino. Nem saída. Nem mesmo um “antes” ou “depois”. Apenas o ciclo. O movimento incessante. A ilusão de progresso, enquanto tudo permanecia o mesmo.
O trem seguia viagem. Ele também.
Sem escolhas, sem respostas.
Só o caminho.